quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Autobiografia de Santo Antonio Maria Claret


Primeira parte

Capítulo I
Nascimento e batismo

3. Nasci 4 em Sallent 5, comarca de Manresa, bispado de Vic, província de Barcelona. Meus pais chamavam-se João Claret 6 e Josefa Clará. Casados, honrados e tementes a Deus, muito devotos do Santíssimo Sacramento do Altar e de Maria Santíssima.

4. Fui batizado na pia batismal da paróquia de Santa Maria de Sallent, no dia 25 de dezembro, dia do Natal do Senhor, do ano de 1807. Embora nos livros paroquiais conste 1808, por iniciar a contar o ano seguinte por este dia. Por esta razão meu registro é o primeiro do livro do ano de 1808.

5. Deram-me o nome de Antônio Adjutório João. Meu padrinho, um irmão de minha mãe, que se chamava Antônio Clará, ele quis que me chamasse pelo seu nome de Antônio. Minha madrinha, irmã de meu pai, que se chamava Maria Claret, casada com Adjutório Canudas, me pôs o nome de seu marido. O terceiro nome é João, que é o do meu pai. Depois, por amor à Virgem Santíssima, acrescentei o dulcíssimo nome de Maria 7, porque ela é minha mãe, minha madrinha, minha mestra, minha diretora e meu tudo, depois de Jesus. Assim, meu nome é Antônio Maria Adjutório João Claret e Clará.

6. Somos onze irmãos: seis homens e cinco mulheres, que enumerarei por ordem, citando o ano em que nasceram.
1º Rosa, nascida em 1800, casada, viúva hoje, muito trabalhadeira, honrada e piedosa; foi a que mais me dedicou carinho; 8
2º Mariana, nascida em 1802, morreu aos dois anos;
3º João, nascido em 1804, herdeiro de todos os bens da família; 9
4º Bartolomeu, nascido em 1806, morto aos dois anos;
5º Eu próprio, nascido em 1807 ( = 1808);
6º Uma irmã, nascida em 1809, falecida após o nascimento;
7º José, nascido em l810, casado; teve duas filhas, que se tornaram Irmãs de Caridade ou Terciárias; 10
8º Pedro, nascido em 1813, falecido aos quatro anos;
9º Maria, nascida em 1815, tornou-se Irmã Terciária; 11
10º Francisca, nascida em 1820, falecida aos três anos;
11º Manuel, nascido em 1823, morreu aos treze anos, após os estudos de Humanidades em Vic. 12


Capítulo II
Primeira infância

7. A Providência Divina sempre velou sobre mim de um modo singular, como se verá neste e em outros casos que relatarei. Minha mãe sempre criou sozinha seus filhos, mas a mim não lhe foi possível, porque lhe faltava saúde. Por isso me confiou a uma ama-de-leite da mesma cidade, com a qual permanecia dia e noite 13. O dono da casa fez uma escavação muito profunda, a fim de ampliar a loja. Uma noite em que eu não estava lá, em conseqüência da escavação, os alicerces cederam, trincaram-se as paredes e a casa desabou. Morreram, soterrados pelos escombros, minha ama-de-leite e seus quatro filhos. E, caso lá me encontrasse, teria tido a mesma sorte dos demais. Bendita seja a Providência de Deus! E quantas graças devo dar a Maria santíssima que, desde pequeno, preservou-me da morte e me livrou de outros apuros. Ó, como sou ingrato!...

8. As primeiras idéias que guardo na memória são de quando tinha uns cinco anos. Quando deitado, em vez de dormir, pois sempre fui de dormir pouco, pensava na eternidade. Pensava: Sempre, sempre, sempre. Imaginava distâncias enormes. A elas juntava outras e mais outras. E, ao ver que não alcançava o fim, me arrepiava e pensava: Os que tiverem a desgraça de ir para a eternidade de sofrimentos será que jamais deixarão de sofrer? Sofrerão sempre? Sim, sempre, sempre terão que sofrer. 14.

9. Tudo isto me causava uma profunda pena, porque eu, por natureza, sou muito compassivo. Essa idéia da eternidade de sofrimentos ficou tão gravada em mim, seja pela ternura que despertou, seja pelas muitas vezes que pensei nela, por isso é o que mais tenho presente. Este mesmo pensamento é o que mais me fez, me faz e me fará trabalhar, enquanto viver, pela conversão dos pecadores, no púlpito, no confessionário, por meio de livros, estampas, folhas avulsas, conversas familiares, etc., etc.

10. Conforme já disse, a razão disso é porque tenho um coração tão terno e compassivo que não posso ver uma desgraça ou uma miséria, que não a socorra; tiro o pão da minha boca para dá-lo ao pobrezinho e até deixo de alimentar-me para tê-lo e dá-lo quando alguém o pede. Tenho escrúpulo de gastar para mim, quando lembro que existem tantas necessidades para remediar. Pois bem, se estas misérias corporais e momentâneas me afetam tanto, imaginem o que produzirá em meu coração o pensar na condenação eterna, não para mim e sim para os demais que voluntariamente vivem em pecado mortal.

11. Eu me digo muitas vezes: A fé nos diz que existe o céu para os bons e inferno para os maus, e que as penas do inferno são eternas; que basta um único pecado mortal para condenar uma alma, pela malícia infinita que tem o pecado mortal, pela ofensa a um Deus infinito. Considerando esses princípios certíssimos, ao ver a facilidade com que se peca, tal como se bebe um copo de água, como se ri ou se diverte; ao ver a multidão de pessoas que estão continuamente em pecado mortal e que assim vão caminhando para a morte e para o inferno, não posso repousar; tenho de correr e gritar, e então digo a mim mesmo:

12. Se eu visse alguém prestes a cair num poço ou numa fogueira, garanto que correria e gritaria para avisá-lo e afastá-lo do perigo. Por que não farei a mesma coisa para evitar que caia no poço e na fogueira do inferno?

13. Não posso compreender como os outros sacerdotes que crêem nas mesmas verdades que eu creio e que todos devem crer, não pregam nem exortam para preservar as pessoas de caírem no inferno. 15

14. E ainda admiro como os leigos, homens e mulheres, que têm fé, não gritam. E digo a mim mesmo: Se uma casa pegar fogo e, por ser noite e por estarem todos dormindo e não virem o perigo, porventura o primeiro que percebesse, não avisaria, não correria pelas ruas, gritando: Fogo! Fogo, em tal casa? Por que então não gritar: fogo do inferno! para acordar a tantos que vivem presos na letargia do pecado, sabendo que, ao despertarem, estarão ardendo no fogo do inferno? 16

15. Essa idéia da eternidade infeliz 17, que muito vivamente começou em mim aos cinco anos, tenho-a sempre presente e, com a ajuda de Deus, jamais a esquecerei; ela é a mola propulsora de meu zelo pela salvação das almas.

16. Com o passar do tempo, a esse estímulo se juntou um outro, que depois explicarei: o de pensar que o pecado não só condena meu próximo, mas que é, acima de tudo, uma ofensa a Deus, que é meu Pai. 18 Ah! Esta idéia me corta o coração e me faz correr como... E me digo: se um pecado é de uma malícia infinita, o impedir um pecado é impedir uma injúria infinita ao meu Deus, ao meu bom Pai.

17. Se um filho tivesse um pai muito bom e visse que, sem motivo, o maltratam, não o defenderia? Se o visse sendo levado ao suplício, não envidaria todos os esforços para libertá-lo? Pois, que devo fazer para honra de meu Pai, que é tão facilmente ofendido e, inocente, levado ao calvário para ser novamente crucificado pelo pecador, como diz São Paulo? Calar não seria um crime? Não se esforçar ao máximo não seria...? Ó meu Deus! Ó meu Pai! Dai-me força para impedir todos os pecados, pelo menos um, mesmo que por causa disso me façam em pedaços.


Capítulo III
Primeiras inclinações

18. Para maior confusão minha, direi as palavras do autor do Livro da Sabedoria: Era um menino vigoroso, dotado de uma alma excelente (Sb 8,19). Quer dizer: recebi de Deus, por puro ato de sua bondade, uma boa índole. 19

19. Lembro-me que na guerra da independência, que durou do ano 1808 a 1814, o medo que os habitantes de Sallent tinham dos franceses era grande, e com razão, pois estes haviam incendiado a cidade de Manresa e o povoado de Calders, próximo a Sallent. 20 Todos fugiam quando chegava a notícia de que o exército francês estava próximo. As primeiras vezes que fugi, lembro-me que me levavam nos ombros, porém as últimas, tinha quatro ou cinco anos e já andava, dava a mão a meu avô, João Clará, pai de minha mãe, 21 e, como era de noite e tinha a visão fraca, advertia-o dos obstáculos com muita paciência e carinho. O pobre velho ficava muito consolado ao ver que não o deixava nem fugia com os demais irmãos e primos, que nos deixavam sozinhos. E sempre lhe professei muito amor e carinho até sua morte; e não somente a ele, mas a todos os idosos e impossibilitados.

20. Não suportava que alguém zombasse de algum idoso, como é comum acontecer entre os jovens. Lembrava o castigo exemplar de Deus aos que zombavam de Eliseu. 22 Lembro-me que na igreja, sempre que chegava um idoso, se eu estivesse sentado, levantava-me e, com muito gosto, cedia meu lugar; na rua sempre os cumprimentava; quando tinha a oportunidade de conversar com algum deles, era para mim a maior satisfação. Queira Deus que eu tenha aproveitado bem os conselhos que os idosos me davam... 23

21. Ó meu Deus, como sois bom! Como sois rico em misericórdia para comigo! Oh! Se tivésseis dado a outro as graças que a mim destes, este teria correspondido melhor que eu! Piedade, Senhor, pois a partir de agora começarei a ser bom, ajudado por vossa divina graça!

Continua...

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