Capítulo VIII
Mudança para Barcelona
56. Desejoso de progredir nos
conhecimentos da arte têxtil, pedi a meu pai que me enviasse para Barcelona. 48
Meu pai concordou, acompanhou-me até lá. Eu mesmo, a exemplo de São Paulo,
ganhava com minhas próprias mãos o que necessitava para minha alimentação,
vestuário, livros e para pagar os estudos, etc. A primeira coisa que eu fiz foi
apresentar uma solicitação à direção da Casa Lonja a fim de ser admitido nas
aulas de desenho; consegui e aproveitei bastante. 49 Quem diria, o desenho que
aprendia para a arte têxtil, Deus queria que o usasse para a religião! Na
verdade, muito me tem servido para ilustrar o catecismo e assuntos místicos.
57. Além do desenho, comecei a
estudar gramática castelhana e francesa, orientando todos os estudos para o
objetivo de progredir no comércio e na fabricação.
58. De tudo que já estudei e de
tudo a que me dediquei durante a vida, nada assimilei tão bem como a arte têxtil.
Na casa em que trabalhava, havia livros de amostras que a cada ano eram
publicados em Paris e Londres, e adquiridos para estarem atualizados.50 Deus me
dera tanta inteligência nessa arte que, ao analisar uma amostra qualquer, no
mesmo instante armava o tear com os traços desejados, conseguindo o mesmíssimo
resultado; e mais: se o dono preferisse, fazia outros ainda melhores.
59. No princípio, senti certa
dificuldade. Porém, com aplicação dia enoite, tanto em dia de trabalho como em
dia de festa, (no que era permitido, como estudar, escrever e desenhar), daí
tirei muito proveito. Oxalá me tivesse aplicado assim à virtude. Como seria
outra pessoa! Quando depois de muitas tentativas acertava a decomposição e
composição da amostra, sentia uma alegria tão grande, tal satisfação que andava
pela casa como louco de contente. Tudo isso aprendi sem professor; antes, pelo
contrário, ocultavam-me o processo, em vez de me ensinarem o modo de entender
as amostras e sua reprodução.
60. Certa vez, perguntei ao gerente
da fábrica como se poderia reproduzir a amostra que tínhamos em mãos, se desta
ou daquela maneira. Ele pegou o lápis e determinou a composição do
tear.Silenciei e lhe disse apenas que não levasse a mal, mas estudaria em casa
a amostra e o esquema que traçara. Poucos dias depois, apresentei-lhe o desenho
do esquema necessário para realizar a amostra, fazendo-o notar,
simultaneamente, que o esquema que ele traçara não teria como resultado a
produção da amostra, mas outra coisa que lhe indiquei. O gerente ficou admirado
ao ver os desenhos e ao ouvir as razões e explicações. 51
61. Depois desse dia,
valorizou-me muito. Levava-me a passeio junto com seus filhos. Realmente, muito
me ajudaram sua amizade, suas orientações e seus princípios, pois, além de ser
homem bastante instruído, era esposo fiel, bom pai de família, bom cristão, um
monarquista por princípios e convicções. Muito me ajudaram também as lições
dadas por esse senhor, pois em Sallent, minha cidade, até o arque se respirava
era constitucional. 52
62. Com relação à fabricação, não
só saí bastante habilidoso no domínio das amostras, como disse, mas também
bastante prático na composição do esquema do tear. Assim, alguns trabalhadores
pediam-me o favor de lhes preparar o tear, pois não conseguiam acertá-lo. Eu os
atendia com alegria, por isso me respeitavam e me queriam muito bem.
63. A fama da habilidade para a
arte têxtil que o Senhor me dera espalhou-se por toda a Barcelona. Daí é que
alguns senhores chamaram meu pai e lhe apresentaram o plano de formarmos uma
sociedade e instalarmos uma fábrica por nossa conta. Essa idéia agradou
muitíssimo a meu pai, pois seria uma oportunidade para desenvolver a fábrica
que já possuía. Falou-me das vantagens que disso resultaria e a fortuna que me
esperava.
64. Porém, como são inescrutáveis
os juízos de Deus! Mesmo estando tão entusiasmado com a fabricação e, mesmo
tendo feito muito progresso, não consegui decidir-me. Sentia interiormente uma
repugnância em fixar-me e fazer com que meu pai assumisse compromissos.
Disse-lhe que me parecia um tanto cedo para tal empenho, pois eu era muito
jovem.Além do mais, sendo de baixa estatura, os trabalhadores não me
respeitariam. Respondeu-me que não me preocupasse com isso, pois outro
governaria os trabalhadores; eu teria que me ocupar somente da parte diretiva
da fabricação... Também me escusei, dizendo que depois veríamos, que no momento
não me sentia inclinado. Na verdade isto foi providencial. Francamente, eu
nunca me opus aos desígnios de meu pai. Esta foi a primeira vez em que eu não
fiz a sua vontade; e foi porque a vontade de Deus queria outra coisa de mim:
queria que eu fosse sacerdote e não fabricante, embora nessa época não tivesse
idéia clara de tal chamado. 53
65. Nesse momento da minha vida,
cumpriu-se em mim aquela passagem do Evangelho na qual os espinhos sufocaram o
bom trigo. 54 O contínuo pensar nas máquinas, nos teares e nas composições me
deixava tão absorto que não conseguia pensar em outra coisa. Ó meu Deus, quanta
paciência tivestes para comigo! Ó virgem Maria, até mesmo de vós havia momentos
em que me esquecia! Misericórdia, minha mãe!
Capítulo IX
Motivos para deixar a fabricação.
66. Nos três primeiros anos em
que estive em Barcelona, esfriou muito em mim o fervor espiritual que sentia
quando estava em minha terra natal. 55 É verdade que recebia os santos
sacramentos algumas vezes ao ano, que todos os dias de festa e de preceito
participava da missa e diariamente rezava a Maria santíssima o santo rosário e
algumas outras devoções; porém não eram tantas nem tão fervorosas como antes.
Todo o meu objetivo, todo o meu afã era a arte têxtil. Por mais que o diga, não
o salientarei bastante; era um delírio o que eu sentia pela fabricação. E quem
haveria de dizer que essa afeição tão extremada era o meio de que Deus se havia
de valer para arrancar-me do amor à fabricação?
67. Nos últimos tempos de
Barcelona, tal era minha afeição à arte têxtil que, ao participar da santa
missa nos dias de festa e preceito, fazia um grande esforço para afastar estes
pensamentos. Mesmo sentindo prazer em pensar e falar sobre a fabricação, não
queria que isso acontecesse durante a missa e demais devoções. Procurava
afastar os pensamentos, prometia a mim mesmo que depois me ocuparia disso e que
no momento queria pensar na oração. Meus esforços eram inúteis. Era como tentar
parar de repente uma roda em alta velocidade. Durante a missa, para meu maior
tormento, surgiam idéias novas, descobertas, etc. De tal modo que, durante a
celebração, tinha mais máquinas na minha cabeça do que santos no altar. 56
68. Em meio a esta barafunda de
coisas, enquanto participava da santa missa, lembrei-me de ter lido quando
pequeno aquelas palavras do Evangelho: Que servirá a um homem ganhar o mundo
inteiro, se vier a prejudicar a sua vida? 57 Esta frase causou-me profunda
impressão; foi para mim uma seta que me feriu o coração. Eu pensava e refletia
sobre o que haveria de fazer, porém não acertava.
69. Encontrei-me como Saulo a
caminho de Damasco. Faltava-me um Ananias que me dissesse o que devia fazer.
Procurei o irmão Paulo 58 na“Casa de San Felipe Néri”; relatei-lhe minha
situação. Ele escutou-me com muita paciência e caridade e disse-me com toda
humildade: Meu senhor, sou um simples irmão leigo; não sou eu quem há de aconselhá-lo;
eu o acompanharei a um padre bastante sábio e muito virtuoso e ele lhe dirá o
que deve fazer. Apresentou-me então ao padre Amigó! Este ouviu-me e louvou
minha resolução. Aconselhou-me que estudasse Latim e eu obedeci. 59
70. Despertaram em mim os
fervores de piedade e devoção, abri os olhos, e me certifiquei dos perigos
corporais e espirituais pelos quais passara. Relatarei brevemente alguns. 60
71. Naquele último verão, a
santíssima Virgem preservou-me do afogamento no mar. Como trabalhava muito, no
verão passava muito mal.Perdia completamente o apetite. Encontrava algum alívio
indo ao mar: lavava os pés, tomava alguns goles de água. Certo dia, fui ao Mar Velho,
depois da Barceloneta. Estando na praia, o mar de repente se agitou e uma série
de grandes ondas me carregou; sem esperar, estava mar adentro. Fiquei admirado
ao ver-me flutuando sobre as ondas, mesmo sem saber nadar. Depois de invocar
Maria santíssima, encontrei-me novamente na praia, sem que em minha boca
tivesse entrado uma gota de água sequer. Enquanto estava na água sentia a maior
serenidade; depois, ao encontrar-me na praia, horripilava-me ao pensar no
perigo de que havia escapado por intercessão de Maria santíssima. 61
72. Maria santíssima me livrou
também de outro perigo ainda maior, semelhante ao do casto José. Encontrando-me
em Barcelona, ia alguma vez visitar um conterrâneo meu. Não falava com ninguém
da casa a não ser com ele. Ao chegar, dirigia-me ao seu quarto e conversava unicamente
com ele. Porém, viam-me sempre entrar e sair. Eu era então jovenzinho e, se bem
é verdade que eu mesmo ganhava minha roupa, gostava de vestir, não digo com
luxo, mas sim com bastante elegância, talvez demasiada. Será que Deus me pedirá
conta disso no dia do juízo? Um dia, fui à mesma casa e perguntei pelo amigo. A
dona da casa, que era uma senhora jovem, disse-me que o esperasse, pois estava
para chegar. Esperei um pouco e logo percebi a paixão daquela senhora, que se
manifestou com palavras e ações. Eu, depois de invocar Maria santíssima, e
lutando com todas as minhas forças, escapei de seus braços, saí correndo da
casa sem nunca mais voltar e sem dizer a ninguém o que havia ocorrido, a fim de
não prejudicar sua honra. 62
73. Deus dava-me todos esses
golpes para me despertar e livrar-me de todos os perigos do mundo; porém foi
preciso ainda um outro mais forte. Aconteceu o seguinte: Um jovem de minha
idade convidou-me para que abríssemos um negócio em sociedade. Concordei com a
proposta.Iniciamos com investimentos na loteria. 63 Tínhamos bastante
sorte.Como eu estava sempre tão ocupado, podia apenas ser o depositário. Ele adquiria
os bilhetes e eu os guardava. No dia do sorteio eu lhe entregava os bilhetes e
ele me dizia quanto havíamos ganhado. E como tínhamos muitos bilhetes, em cada
jogada, ganhávamos somas consideráveis. Separávamos o que era necessário para
comprar mais bilhetes e o restante era colocado a juros nas mãos de
comerciantes, as eis por cento, com os recibos correspondentes. Eu guardava os recibos.
Tudo o mais corria por conta do meu companheiro.
74. Já eram muitos os recibos e a
soma era considerável. E eis que, certo dia, veio dizer-me que um de nossos
bilhetes fora premiado com 24.000 duros, mas que, quando ia fazer a cobrança,
perdera o bilhete.E falava a verdade ao dizer que o havia perdido, pois o
colocara no jogo e o perdera. E não só perdeu aquele bilhete, mas também foi ao
meu quarto, na minha ausência, arrombou o meu cofre e levou consigo todos os
recibos da sociedade, que estavam ali guardados. Além disso, carregou todo o
meu dinheiro particular. Levou também consigo os livros e a roupa, e penhorou
tudo numa loja de objetos usados. Perdeu tudo no jogo. Finalmente, desejoso de
se ressarcir, não tendo mais o que jogar, desesperado, foi a uma casa na qual
tinha entrada, levou as jóias de uma senhora e as vendeu. Foi ao jogo e também
perdeu.
75. Entretanto, a senhora achou
falta de suas jóias e pensou que aquele fulano as havia roubado. Denunciou à
autoridade policial.Prenderam o ladrão, que confessou seu delito; foi condenado
a dois anos de prisão. É impossível explicar o golpe que me deu este contratempo,
não por ter perdido os bens, apesar de muitos, mas pela perda da honra.
Pensava: Que dirão as pessoas? Vão pensar que tu eras cúmplice dos seus jogos e
roubos. Ai! Um companheiro teu na cadeia, na prisão! Era tanta confusão e
vergonha que mal me atrevia sair à rua. Parecia que todos os olhares se
voltavam para mim, falavam de mim e se referiam a mim.
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