quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Autobiografia de Santo Antonio Maria Claret


Capítulo VIII
Mudança para Barcelona

56. Desejoso de progredir nos conhecimentos da arte têxtil, pedi a meu pai que me enviasse para Barcelona. 48 Meu pai concordou, acompanhou-me até lá. Eu mesmo, a exemplo de São Paulo, ganhava com minhas próprias mãos o que necessitava para minha alimentação, vestuário, livros e para pagar os estudos, etc. A primeira coisa que eu fiz foi apresentar uma solicitação à direção da Casa Lonja a fim de ser admitido nas aulas de desenho; consegui e aproveitei bastante. 49 Quem diria, o desenho que aprendia para a arte têxtil, Deus queria que o usasse para a religião! Na verdade, muito me tem servido para ilustrar o catecismo e assuntos místicos.

57. Além do desenho, comecei a estudar gramática castelhana e francesa, orientando todos os estudos para o objetivo de progredir no comércio e na fabricação.

58. De tudo que já estudei e de tudo a que me dediquei durante a vida, nada assimilei tão bem como a arte têxtil. Na casa em que trabalhava, havia livros de amostras que a cada ano eram publicados em Paris e Londres, e adquiridos para estarem atualizados.50 Deus me dera tanta inteligência nessa arte que, ao analisar uma amostra qualquer, no mesmo instante armava o tear com os traços desejados, conseguindo o mesmíssimo resultado; e mais: se o dono preferisse, fazia outros ainda melhores.

59. No princípio, senti certa dificuldade. Porém, com aplicação dia enoite, tanto em dia de trabalho como em dia de festa, (no que era permitido, como estudar, escrever e desenhar), daí tirei muito proveito. Oxalá me tivesse aplicado assim à virtude. Como seria outra pessoa! Quando depois de muitas tentativas acertava a decomposição e composição da amostra, sentia uma alegria tão grande, tal satisfação que andava pela casa como louco de contente. Tudo isso aprendi sem professor; antes, pelo contrário, ocultavam-me o processo, em vez de me ensinarem o modo de entender as amostras e sua reprodução.

60. Certa vez, perguntei ao gerente da fábrica como se poderia reproduzir a amostra que tínhamos em mãos, se desta ou daquela maneira. Ele pegou o lápis e determinou a composição do tear.Silenciei e lhe disse apenas que não levasse a mal, mas estudaria em casa a amostra e o esquema que traçara. Poucos dias depois, apresentei-lhe o desenho do esquema necessário para realizar a amostra, fazendo-o notar, simultaneamente, que o esquema que ele traçara não teria como resultado a produção da amostra, mas outra coisa que lhe indiquei. O gerente ficou admirado ao ver os desenhos e ao ouvir as razões e explicações. 51

61. Depois desse dia, valorizou-me muito. Levava-me a passeio junto com seus filhos. Realmente, muito me ajudaram sua amizade, suas orientações e seus princípios, pois, além de ser homem bastante instruído, era esposo fiel, bom pai de família, bom cristão, um monarquista por princípios e convicções. Muito me ajudaram também as lições dadas por esse senhor, pois em Sallent, minha cidade, até o arque se respirava era constitucional. 52

62. Com relação à fabricação, não só saí bastante habilidoso no domínio das amostras, como disse, mas também bastante prático na composição do esquema do tear. Assim, alguns trabalhadores pediam-me o favor de lhes preparar o tear, pois não conseguiam acertá-lo. Eu os atendia com alegria, por isso me respeitavam e me queriam muito bem.

63. A fama da habilidade para a arte têxtil que o Senhor me dera espalhou-se por toda a Barcelona. Daí é que alguns senhores chamaram meu pai e lhe apresentaram o plano de formarmos uma sociedade e instalarmos uma fábrica por nossa conta. Essa idéia agradou muitíssimo a meu pai, pois seria uma oportunidade para desenvolver a fábrica que já possuía. Falou-me das vantagens que disso resultaria e a fortuna que me esperava.

64. Porém, como são inescrutáveis os juízos de Deus! Mesmo estando tão entusiasmado com a fabricação e, mesmo tendo feito muito progresso, não consegui decidir-me. Sentia interiormente uma repugnância em fixar-me e fazer com que meu pai assumisse compromissos. Disse-lhe que me parecia um tanto cedo para tal empenho, pois eu era muito jovem.Além do mais, sendo de baixa estatura, os trabalhadores não me respeitariam. Respondeu-me que não me preocupasse com isso, pois outro governaria os trabalhadores; eu teria que me ocupar somente da parte diretiva da fabricação... Também me escusei, dizendo que depois veríamos, que no momento não me sentia inclinado. Na verdade isto foi providencial. Francamente, eu nunca me opus aos desígnios de meu pai. Esta foi a primeira vez em que eu não fiz a sua vontade; e foi porque a vontade de Deus queria outra coisa de mim: queria que eu fosse sacerdote e não fabricante, embora nessa época não tivesse idéia clara de tal chamado. 53

65. Nesse momento da minha vida, cumpriu-se em mim aquela passagem do Evangelho na qual os espinhos sufocaram o bom trigo. 54 O contínuo pensar nas máquinas, nos teares e nas composições me deixava tão absorto que não conseguia pensar em outra coisa. Ó meu Deus, quanta paciência tivestes para comigo! Ó virgem Maria, até mesmo de vós havia momentos em que me esquecia! Misericórdia, minha mãe!


Capítulo IX
Motivos para deixar a fabricação.

66. Nos três primeiros anos em que estive em Barcelona, esfriou muito em mim o fervor espiritual que sentia quando estava em minha terra natal. 55 É verdade que recebia os santos sacramentos algumas vezes ao ano, que todos os dias de festa e de preceito participava da missa e diariamente rezava a Maria santíssima o santo rosário e algumas outras devoções; porém não eram tantas nem tão fervorosas como antes. Todo o meu objetivo, todo o meu afã era a arte têxtil. Por mais que o diga, não o salientarei bastante; era um delírio o que eu sentia pela fabricação. E quem haveria de dizer que essa afeição tão extremada era o meio de que Deus se havia de valer para arrancar-me do amor à fabricação?

67. Nos últimos tempos de Barcelona, tal era minha afeição à arte têxtil que, ao participar da santa missa nos dias de festa e preceito, fazia um grande esforço para afastar estes pensamentos. Mesmo sentindo prazer em pensar e falar sobre a fabricação, não queria que isso acontecesse durante a missa e demais devoções. Procurava afastar os pensamentos, prometia a mim mesmo que depois me ocuparia disso e que no momento queria pensar na oração. Meus esforços eram inúteis. Era como tentar parar de repente uma roda em alta velocidade. Durante a missa, para meu maior tormento, surgiam idéias novas, descobertas, etc. De tal modo que, durante a celebração, tinha mais máquinas na minha cabeça do que santos no altar. 56

68. Em meio a esta barafunda de coisas, enquanto participava da santa missa, lembrei-me de ter lido quando pequeno aquelas palavras do Evangelho: Que servirá a um homem ganhar o mundo inteiro, se vier a prejudicar a sua vida? 57 Esta frase causou-me profunda impressão; foi para mim uma seta que me feriu o coração. Eu pensava e refletia sobre o que haveria de fazer, porém não acertava.

69. Encontrei-me como Saulo a caminho de Damasco. Faltava-me um Ananias que me dissesse o que devia fazer. Procurei o irmão Paulo 58 na“Casa de San Felipe Néri”; relatei-lhe minha situação. Ele escutou-me com muita paciência e caridade e disse-me com toda humildade: Meu senhor, sou um simples irmão leigo; não sou eu quem há de aconselhá-lo; eu o acompanharei a um padre bastante sábio e muito virtuoso e ele lhe dirá o que deve fazer. Apresentou-me então ao padre Amigó! Este ouviu-me e louvou minha resolução. Aconselhou-me que estudasse Latim e eu obedeci. 59

70. Despertaram em mim os fervores de piedade e devoção, abri os olhos, e me certifiquei dos perigos corporais e espirituais pelos quais passara. Relatarei brevemente alguns. 60

71. Naquele último verão, a santíssima Virgem preservou-me do afogamento no mar. Como trabalhava muito, no verão passava muito mal.Perdia completamente o apetite. Encontrava algum alívio indo ao mar: lavava os pés, tomava alguns goles de água. Certo dia, fui ao Mar Velho, depois da Barceloneta. Estando na praia, o mar de repente se agitou e uma série de grandes ondas me carregou; sem esperar, estava mar adentro. Fiquei admirado ao ver-me flutuando sobre as ondas, mesmo sem saber nadar. Depois de invocar Maria santíssima, encontrei-me novamente na praia, sem que em minha boca tivesse entrado uma gota de água sequer. Enquanto estava na água sentia a maior serenidade; depois, ao encontrar-me na praia, horripilava-me ao pensar no perigo de que havia escapado por intercessão de Maria santíssima. 61

72. Maria santíssima me livrou também de outro perigo ainda maior, semelhante ao do casto José. Encontrando-me em Barcelona, ia alguma vez visitar um conterrâneo meu. Não falava com ninguém da casa a não ser com ele. Ao chegar, dirigia-me ao seu quarto e conversava unicamente com ele. Porém, viam-me sempre entrar e sair. Eu era então jovenzinho e, se bem é verdade que eu mesmo ganhava minha roupa, gostava de vestir, não digo com luxo, mas sim com bastante elegância, talvez demasiada. Será que Deus me pedirá conta disso no dia do juízo? Um dia, fui à mesma casa e perguntei pelo amigo. A dona da casa, que era uma senhora jovem, disse-me que o esperasse, pois estava para chegar. Esperei um pouco e logo percebi a paixão daquela senhora, que se manifestou com palavras e ações. Eu, depois de invocar Maria santíssima, e lutando com todas as minhas forças, escapei de seus braços, saí correndo da casa sem nunca mais voltar e sem dizer a ninguém o que havia ocorrido, a fim de não prejudicar sua honra. 62

73. Deus dava-me todos esses golpes para me despertar e livrar-me de todos os perigos do mundo; porém foi preciso ainda um outro mais forte. Aconteceu o seguinte: Um jovem de minha idade convidou-me para que abríssemos um negócio em sociedade. Concordei com a proposta.Iniciamos com investimentos na loteria. 63 Tínhamos bastante sorte.Como eu estava sempre tão ocupado, podia apenas ser o depositário. Ele adquiria os bilhetes e eu os guardava. No dia do sorteio eu lhe entregava os bilhetes e ele me dizia quanto havíamos ganhado. E como tínhamos muitos bilhetes, em cada jogada, ganhávamos somas consideráveis. Separávamos o que era necessário para comprar mais bilhetes e o restante era colocado a juros nas mãos de comerciantes, as eis por cento, com os recibos correspondentes. Eu guardava os recibos. Tudo o mais corria por conta do meu companheiro.

74. Já eram muitos os recibos e a soma era considerável. E eis que, certo dia, veio dizer-me que um de nossos bilhetes fora premiado com 24.000 duros, mas que, quando ia fazer a cobrança, perdera o bilhete.E falava a verdade ao dizer que o havia perdido, pois o colocara no jogo e o perdera. E não só perdeu aquele bilhete, mas também foi ao meu quarto, na minha ausência, arrombou o meu cofre e levou consigo todos os recibos da sociedade, que estavam ali guardados. Além disso, carregou todo o meu dinheiro particular. Levou também consigo os livros e a roupa, e penhorou tudo numa loja de objetos usados. Perdeu tudo no jogo. Finalmente, desejoso de se ressarcir, não tendo mais o que jogar, desesperado, foi a uma casa na qual tinha entrada, levou as jóias de uma senhora e as vendeu. Foi ao jogo e também perdeu.

75. Entretanto, a senhora achou falta de suas jóias e pensou que aquele fulano as havia roubado. Denunciou à autoridade policial.Prenderam o ladrão, que confessou seu delito; foi condenado a dois anos de prisão. É impossível explicar o golpe que me deu este contratempo, não por ter perdido os bens, apesar de muitos, mas pela perda da honra. Pensava: Que dirão as pessoas? Vão pensar que tu eras cúmplice dos seus jogos e roubos. Ai! Um companheiro teu na cadeia, na prisão! Era tanta confusão e vergonha que mal me atrevia sair à rua. Parecia que todos os olhares se voltavam para mim, falavam de mim e se referiam a mim.

76. Ó meu Deus! Como fostes bom e admirável para comigo!… De que meios tão estranhos vos valestes para me arrancar do mundo!… Que bebida amarga usastes para livrar-me da Babilônia! E a vós, minha mãe, como poderei agradecer-vos por me terdes preservado da morte, tirando-me domar? Se naquele lance me tivesse afogado, como naturalmente teria acontecido, onde me encontraria agora? Vós o sabeis, ó minha mãe! Sim, no inferno me encontraria, e em lugar muito profundo, por minha ingratidão. Assim como Davi, devo exclamar: Misericórdia tua magna est super me, et eruisti animam meam ex inferno inferiori: Vossa misericórdia foi grande para comigo, arrancastes minha alma das profundezas da região dos mortos.64

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