quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Autobiografia de Santo Antonio Maria Claret


Continuação da Primeira parte

Capítulo IV
Primeira educação

22. Tinha somente seis anos de idade quando meus queridos pais me mandaram à escola. Meu professor de primeiras letras foi o padre Antônio Pascual, 24 homem muito ativo e religioso; nunca me castigou nem repreendeu. Também procurava não lhe dar motivo para isso; eu era sempre pontual, assistia sempre às aulas, levando as lições sempre bem estudadas.

23. Aprendi o catecismo com tanta perfeição que o recitava sempre que queria, do início ao fim, sem nenhum erro. Outros três meninos também o aprenderam; o catequista nos apresentou ao pároco, padre José Amigó, 25 que fez os quatro recitarem o catecismo em dois domingos seguidos. Na igreja, na presença do povo, nós o recitamos sem nenhum erro. Como prêmio deu a cada um de nós um bonito santinho que guardamos com carinho.

24. Depois de ter aprendido bem o catecismo, mandou-me ler Pinton, Compêndio da História Sagrada. 26 Suas passagens me ficaram tão impressas na memória, que depois as contava com tranqüilidade.

25. Meus pais eram muito bons, juntamente com o professor de primeiras letras, trabalharam na minha formação intelectual baseada no amor à verdade, cultivavam também em meu coração a prática da religião e de todas as virtudes. Meu pai, todos os dias, depois do almoço, me fazia ler um livro espiritual e à noite ficávamos um tempo juntos, à mesa; ele sempre nos contava alguma coisa edificante e instrutiva, até a hora de dormir.

26. Tudo que me ensinavam e explicavam meus pais e meu professor eu o entendia perfeitamente, mesmo sendo muito criança; o que não entendia era o diálogo do catecismo, que o recitava muito bem, mas como um papagaio. Contudo, reconheço agora o bom que é sabê-lo de cor. Mais tarde, sem saber como, sem falar daquelas matérias, vinham-me à mente e compreendia as grandes verdades que eu dizia e recitava sem entendê-las, e me dizia: Oba! Isto quer dizer isto e isto! Como era ingênuo e não entendia. Do mesmo modo que os botões das rosas que com o tempo se abrem e, se não há botões, não podem existir rosas, assim são as verdades da religião: se não houver instrução através do catecismo, haverá ignorância completa em matéria de religião, mesmo nos homens que se passam por sábios. Quanto me serviu a instrução do catecismo e os conselhos e ensinamentos dos meus pais e professores...!

27. Um dia, estando sozinho na cidade de Barcelona, como direi oportunamente, ao ver e ouvir coisas más, lembrava-me do que aprendera e dizia: Isso é mau, deves evitá-lo. Deves antes dar crédito a Deus, aos pais e ao professor e não a esses infelizes que não sabem o que dizem nem o que fazem.

28. Meus pais e meu professor me instruíram, não só nas verdades em que devia crer, mas também nas virtudes que devia praticar. Com respeito ao meu próximo, diziam-me que nunca deveria desejar ou pegar o que é de outrem. Quando encontrava algo, faziam-me devolver ao seu dono. Um dia, ao sair da escola, na rua da minha casa, encontrei no chão uma moeda de pouco valor, peguei-a pensando em devolvê-la ao dono e, não vendo ninguém na rua, pensei que tivesse caído de algum balcão da casa em frente; subi à casa, perguntei pela dono da casa e entreguei-lhe a moeda. 27

29. Educaram-me de tal maneira na obediência e resignação que sempre estava contente com o que eles me faziam, dispunham e me davam, tanto no vestir como na alimentação. Não me recordo ter dito alguma vez: Não quero isto, quero aquilo! E estava tão acostumado que, depois quando sacerdote, minha mãe, que sempre me amou muito, me dizia: Antônio, gostas disto? Eu lhe dizia: O que a senhora me dá, sempre eu gosto. - Porém, sempre há coisas que apreciamos mais que outras. - As que a senhora me dá são as de que eu gosto, mais que todas. Assim morreu sem saber o que materialmente me agradava mais. 28


Capítulo V
Trabalho na fábrica

30. Eu era pequeno, quando ainda estava na fase de alfabetização, ocasião em que um inspetor, ao visitar a escola, me perguntou o que gostaria de ser. Respondi-lhe que desejava ser sacerdote. 29 Tendo terminando com perfeição o primário, puseram-me nas aulas de Latim. O professor era um sacerdote muito bom e sábio, chamado João Riera. 30 Com ele aprendi ou decorei nomes, verbos, gêneros e alguma coisa mais. Como as aulas foram encerradas, não pude estudar mais o Latim e fiquei assim.

31. Como meu pai era fabricante de fios e tecidos, colocou-me na fábrica para trabalhar. 31 Obedeci sem dizer uma palavra, sem fazer cara feia e sem manifestar contrariedade. Pus-me a trabalhar o quanto podia, sem ter jamais manifestado preguiça ou má vontade. 32 Fazia tudo da melhor forma que sabia para não causar aborrecimento em nada a meus queridos pais, pois os amava muito e eles também a mim.

32. O sofrimento maior era quando meus pais tinham que repreender algum funcionário que não tinha executado bem o seu trabalho. Estou certo de que sofria muito mais do que o repreendido, pois tenho um coração tão sensível que, ao presenciar o sofrimento de alguém, fico profundamente condoído, mais do que a própria pessoa que sofre.

33. Meu pai fez-me passar por todos os tipos de trabalhos da fábrica de fios e tecidos. Por uma longa temporada, colocou-me, juntamente com outro jovem, para dar a última demão aos trabalhos que os demais faziam. Quando tínhamos de corrigir alguém, dava-me muita pena; contudo, antes observava se havia no trabalho executado, alguma coisa que estivesse bem-feita. Então eu começava por este detalhe e o elogiava, dizendo que tal obra estava bem feita, só que tinha este e aquele defeito, mas que, uma vez corrigidos esses senões, teríamos uma obra perfeita.

34. Eu agia assim sem saber o porquê. Com o tempo, soube que era por uma especial graça e bênção de amabilidade que o Senhor me concedera. Assim os trabalhadores sempre recebiam com humildade a correção e se emendavam. O outro companheiro, melhor que eu, mas que não possuía o mesmo espírito de amabilidade, quando tinha que corrigir, incomodava-se, repreendia-os com aspereza, eles ficavam aborrecidos e às vezes nem sabiam em que haviam de emendar-se. Ali aprendi o quanto convém tratar a todos com amabilidade e agrado, mesmo os mais rudes! E é verdade que se tira melhor vantagem agindo com doçura do que com aspereza e mau humor. 33

35. Ó Deus meu! Como tendes sido bom para comigo! Levei muito tempo até conhecer as muitas e grandes graças que me confiastes. 34 Fui servo inútil, que não fiz crescer o talento a mim confiado. Porém, Senhor, dou-vos minha palavra que trabalharei; tende um pouco de paciência comigo; não me retireis o talento; eu o farei render; dai-me vossa graça e vosso divino amor, e prometo que trabalharei.


Capítulo VI
Primeiras devoções

36. Desde muito pequeno, me senti inclinado à piedade e à religião. Todos os dias de festa e de preceito participava da santa missa e nos demais dias sempre que podia. Comumente, nos dias festivos participava de duas missas: uma rezada e outra cantada. A esta, ia sempre com meu querido pai. Não me recordo de ter brincado ou conversado na igreja. Antes, pelo contrário, estava sempre bem recolhido, modesto e tão devoto que, comparando meus primeiros anos com os dias de hoje, me envergonho, pois com grande humilhação digo que atualmente não tenho a mesma atenção e o coração tão fervoroso como tinha então...

37. Com que fé participava de todas as celebrações de nossa santa religião! As que mais me agradavam eram as do Santíssimo Sacramento. Nessas, eu participava com uma devoção extraordinária e grande satisfação interior. 35 Além do bom exemplo que em tudo me dava meu querido pai, que era devotíssimo do Santíssimo Sacramento, tive a sorte de que viesse parar em minhas mãos um livro com o título Finezas de Jesus Sacramentado. Como gostei dele! Aprendia-o de memória, tamanha a afeição por ele. 36

38. Aos dez anos, deixaram-me comungar. Não consigo explicar o que se passou comigo naquele dia em que tive a imponderável felicidade de receber pela primeira vez, em meu peito, o meu bom Jesus… E, desde então, sempre mais freqüentei os santos sacramentos da penitência e comunhão. Porém, com que fervor, com que devoção e amor! Mais que agora, sim, mais que agora, digo-o com humilhação e vergonha. Agora que tenho mais conhecimentos que então, agora que assimilei uma imensidão de benefícios recebidos desde aqueles primeiros dias, por graça deveria ser um Serafim de amor divino, no entanto sou o que Deus sabe. Quando comparo meus primeiros anos com os dias presentes, me entristeço e choro e confesso que sou um monstro de ingratidão.

39. Além da santa missa, da comunhão freqüente e das celebrações do Santíssimo Sacramento, das quais participava com tanto fervor pela bondade e misericórdia de Deus, assistia também todos os domingos, sem faltar nenhum dia, mesmo que fosse de festa, ao catecismo e à explicação do santo evangelho, ministrado pelo próprio pároco. Esses exercícios terminavam à tarde com a oração do santíssimo rosário.

40. Participava das celebrações de manhã e à tarde. Ao anoitecer, quando já não havia ninguém na igreja, eu para lá voltava e sozinho me entretinha com o Senhor. Com que fé, confiança e amor falava eu com o Senhor, com meu bom Pai! Oferecia-me mil vezes a seu santo serviço, desejava ser sacerdote para consagrar-me dia e noite ao seu ministério. Recordo-me que lhe dizia: Humanamente não vejo nenhuma esperança, porém vós sois tão poderoso que, se quiserdes, arranjareis tudo. Lembro-me de que com toda confiança me abandonei em suas divinas mãos, esperando que ele dispusesse o que deveria ser feito. E assim foi, como direi mais adiante. 37

41. Também veio parar em minhas mãos um pequeno livro chamado O Bom Dia e a Boa Noite. 38 Oh! Quão proveitosa me foi a leitura desse livro! Após a leitura de cada pequeno trecho, apertava-o contra o peito, levantava os olhos rasos de lágrimas ao céu e exclamava dizendo: Ó Senhor, que coisas tão boas eu ignorava! Ó Deus meu! Ó Amor meu! Quisera sempre vos ter amado!

42. Ao considerar os grandes benefícios recebidos através da leitura de bons e piedosos livros, razão pela qual procuro distribuir em grande profusão livros desse estilo, esperando que meu próximo, a quem tanto amo, alcance tantos benefícios quanto eu na sua leitura. Quem me dera que todas as almas conhecessem a bondade de Deus e o quanto nos ama! Ó Deus meu, fazei que todas as criaturas vos conheçam, vos amem e vos sirvam com toda fidelidade e fervor! Ó criaturas todas, amai a Deus, porque é bom, porque é infinita sua misericórdia... 39


Capítulo VII
Primeira devoção a Maria santíssima

43. Já na minha infância e juventude, professava uma cordial devoção a Maria santíssima. Oxalá tivesse agora a devoção de então! Valendo-me da comparação de Rodríguez, 40 sou como aqueles criados velhos das casas dos grandes que quase não servem para nada, considerados como trastes inúteis, conservados na casa mais por compaixão e caridade que pela utilidade de seus serviços. Assim sou eu no serviço da rainha dos céus e da terra: por pura caridade e misericórdia me agüenta e, para que se veja que é verdade, sem exagero, para humilhação minha, direi o que fazia em obséquio a Maria santíssima.

44. Ainda pequeno, deram-me um rosário, que agradeci muitíssimo, como se recebesse um grande tesouro. Com ele rezava, junto com as demais crianças da escola. Ao sair das aulas, à tarde, formando duas filas, íamos à igreja próxima, e todos juntos rezávamos uma parte do rosário, dirigida pelo professor. 41

45. Ainda criança, encontrei em minha casa um livro que se intitulava El Roser, o Rosário. Nele estavam os mistérios do rosário com desenhos e explicações análogas. 42 Aprendi com aquele livro a rezar o rosário, com seus mistérios, ladainhas e outras orações. Quando o professor tomou conhecimento disto, ficou contentíssimo e colocou-me a seu lado na igreja para que eu dirigisse o rosário. Os demais meninos, ao ver que com isso agradava o professor, o aprenderam também e, a partir daí, íamos alternando por semanas, de modo que todos aprendiam e praticavam esta santíssima devoção que, depois da missa, é a mais proveitosa.

46. Daí por diante, rezava, não só na igreja, mas também em casa todas as noites, conforme dispunham meus pais. Concluída a primeira alfabetização e com trabalho fixo na fabrica, como disse no capítulo quinto, diariamente rezava três partes e também rezavam comigo os demais trabalhadores. Eu dirigia e eles respondiam, enquanto trabalhavam. Rezávamos uma parte às oito, antes do café da manhã, outra antes das doze, hora do almoço, e outra antes das nove da noite, hora do jantar.

47. Além de rezar o rosário nos dias de trabalho, rezava também uma Ave-Maria a cada hora do dia e a oração do Angelus Domini (O Anjo do Senhor) em sua devida hora. Nos dias de festa passava mais tempo na igreja do que em casa, porque quase não brincava com as demais crianças. Entretinha-me em casa e, enquanto estava assim, inocentemente entretido em algo, parecia ouvir uma voz; era a Virgem que me chamava para que fosse à igreja, e eu dizia: Já vou, e ia logo.

48. Nunca me cansava de estar na igreja diante de Maria do Rosário. Falava e rezava com tanta confiança com a convicção de que a santíssima virgem me ouvia. 43 Tinha a impressão de que da imagem, diante da qual orava, existia como que um fio de ligação até a original, que está no céu. Sem ter visto naquela idade o telégrafo elétrico, eu imaginava como se existisse um telégrafo daquela imagem até o céu. Não sei explicar, mas orava com mais atenção, fervor e devoção do que agora.

49. Amiúde, desde pequeno, acompanhado de minha irmã Rosa, que era muito devota, ia visitar um santuário de Maria santíssima, chamado Fusimanha, distante aproximadamente seis quilômetros de minha casa. Difícil explicar a devoção que sentia nesse santuário. Avistando a capela ao longe, antes de lá chegar, sentia-me comovido, meus olhos enchiam-se de lágrimas de ternura. Tomávamos o Rosário e íamos rezando até chegar ao local. Visitei essa devota imagem de Fusimanha sempre que me foi possível, não somente quando criança, mas também como estudante, sacerdote e como arcebispo, antes de ir à minha diocese. 44

50. Meu maior prazer era trabalhar, rezar, ler e pensar em Jesus e em Maria santíssima. Por isso gostava muito de guardar silêncio. Falava muito pouco. Comprazia-me estar sozinho para não ser incomodado nos meus pensamentos. 45 Sempre estava contente e alegre. Vivia em paz com todos. Jamais briguei, nem tive rixas com ninguém, nem de criança nem como adulto.

51. Enquanto estava muito alegre e ocupado com estes santos pensamentos, eis que, de repente, tive uma tentação das mais terríveis e blasfemas contra Maria santíssima. Foi o maior sofrimento de minha vida. Lutava com todas as forças para livrar-me dela. Preferia estar no inferno para que se afastasse. Não comia, nem dormia, nem podia olhar para sua imagem. Quanto sofrer! Confessava-me, mas como era muito jovem, não sabia explicar-me. O confessor passou a não dar importância alguma ao fato, e eu continuava no mesmo sofrimento. Ó que amargura! A tentação durou até que o Senhor se dignou livrar-me dela. 46

52. Posteriormente, tive outra tentação, esta contra minha mãe, que me amava muito e eu também a ela. Apoderou-se de mim muito ódio, imensa aversão contra ela. Eu, porém, procurava tratá-la com carinho e humildade, para poder vencer semelhante tentação. Lembro-me que ao contar ao diretor espiritual a tentação que sofria e o que fazia para vencê-la e superá-la, perguntou-me: Quem te disse que praticasse essas coisas? Respondi-lhe: Ninguém, senhor. Então me respondeu: É Deus quem te ensina, filho; avante, sê fiel à graça.

53. Diante de mim, meus companheiros não se atreviam a falar palavrões nem manter conversas maliciosas. Certa vez, por acaso, encontrava-me numa reunião de jovens, pois geralmente eu me afastava de tais rodinhas, porque conhecia a linguagem que se usa em tais ambientes. Foi aí que um dos jovens mais velhos me disse: Antônio, afasta-te de nós, pois queremos falar besteiras. Agradeci-lhes pelo aviso e fui embora sem jamais voltar a procurá-los.

54. Ó meu Deus! Como tendes sido bom para comigo! Oh! Como tenho correspondido mal às vossas finezas! Se Vós, Deus meu, tivésseis dado essas graças a outro qualquer, teria correspondido muito melhor que eu. Que humilhação, que vergonha, no dia do juízo, quando me disserdes: Redde rationem villicationis tuae? (Presta conta de tua administração). 47

55. Ó Maria, minha mãe! Quanta bondade tendes tido para comigo e quão ingrato sou para convosco! Sinto-me confuso e envergonhado: Minha mãe, desejo amar-vos daqui para diante com todo fervor; e não só eu vos amarei, mas procurarei fazer que todos vos conheçam, vos amem, vos sirvam, vos louvem, rezem o santíssimo rosário, devoção que vos é tão agradável. Ó minha mãe! Ajudai-me na minha debilidade e fraqueza, a fim de cumprir minha resolução.

Continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário